sexta-feira, 16 de março de 2012

1º Aniversário do ClariNet. Argumentários e manipulação.

desenho de Vasco. Març.2012

O ClariNet faz hoje um ano; como fazer anos não dá tolerância de ponto, vou contar a história de um embuste (em três partes) que também faz parte da razão das crónicas do ClariNet. É comprido mas têm o fim-de-semana para o ler.

- No programa Daily Show, de Jon Stewart, que ontem passou na SIC Notícias, o Jon foi até à fonte inesgotável de sátira política que é a Fox News.

No programa Fox & Friends de Gretchen Carlson, Steve Doocy e Kilmeade Brian, o jornalista e analista político Steve Doocy leu para as câmaras um memorando com três tópicos chamado “preparação para analistas”, elaborado pelo Partido Republicano. Dizia a nota que os problemas da economia de Obama eram “a dívida nacional, que está a disparar, o desemprego que está acima dos 8% e o preço da gasolina”. Gretchen esbugalhou os olhos por Steve estar a divulgar o argumentário para analistas, do partido, mas ele continuou dirigindo-se à audiência; “O preço da gasolina está a afectar-vos? De que estão a prescindir? Enviem-nos um e-mail”.

É preciso ter lata, e um público estupidificado, para um “analista” ler as instruções do partido republicano aos seus “analistas” – mostrar o jogo e jogá-lo na hora.


2º - Em Fevereiro, aquando das manifestações de estudantes em Valência, o El País denunciou a existência de um argumentário do Partido Popular (PP) destinado a dar directrizes aos seus militantes sobre as respostas que justificassem a violência da repressão. Que “não tinham pedido autorização para as manifestações e por isso eram ilegais”; “Não há cortes na educação, os estudantes estão a ser utilizados”; “ cortar o trânsito é um delito”; “ a maioria dos manifestantes não são estudantes”; “travam uma batalha que não é sua, enganados por gente com outros interesses” etc., etc. Perante a divulgação pela comunicação social do argumentário, o PP assumiu e disse ser “uma comunicação interna e habitual nos partidos”. Os espanhóis estão avisados.

- E cá? Para onde vão os argumentários do PSD e do governo? Para os quadros dos partidos? Para analistas e comentadores políticos?

Ou vão também e directamente para os jornais onde maus (falsos) jornalistas com a cumplicidade de directores fazem propaganda travestida de notícias? Para melhor compreender a situação da comunicação social portuguesa é fundamental ler o que o Provedor dos Leitores do Diário de Notícias, o jornalista Óscar Mascarenhas escreveu em 3 de Março último com o título “Contraditório porquê se a fonte da notícia foi alguém do governo?”. (clicar no ler mais)

 

Contraditório porquê se a fonte da notícia foi alguém do Governo?


por OSCAR MASCARENHAS

Ainda não tinha aberto o DN online de 21 de fevereiro, terça-feira de Carnaval, e já um leitor "meio ensonado" me alertava para a manchete do jornal: "Trabalhadores dos transportes não pagam medicamentos e recebem baixa por inteiro." O leitor, AJF, que me escrevera "às 5 e 43" da manhã, declarava-se "incrédulo": "Sou funcionário da CP e não tenho essas benesses (nem outras que alguns jornais têm vindo a anunciar)."

A manchete saía no primeiro dia de uma greve de trabalhadores da CP e do metro de Lisboa.

Pouco depois, chegava-me outro e-mail: "Os trabalhadores dos transportes nem têm medicamentos gratuitos nem recebem o salário quando estão de baixa", escreveu o leitor MH. "Nisso são iguais a todos os restantes trabalhadores. Não sei quem deu essas informações, o certo é que o DN não se preocupou sequer em confirmar as mesmas."

Solicitei esclarecimentos à Direção do DN, que remeteu as explicações para o autor da notícia, Francisco Almeida Leite, o qual respondeu: "A notícia a que se refere o provedor é de interesse público manifesto. Nesse dia realizava-se mais uma greve na CP, daí que o dever de informar os nossos leitores sobre as regalias e benefícios dos trabalhadores de algumas empresas de transportes seja mais do que óbvio. [...]"

O jornalista acrescenta: "Sobre o conteúdo da notícia por mim redigida e assinada, reafirmo a sua veracidade e faço notar que as queixas ao provedor são apresentadas através de duas cartas anónimas que pretendem pôr em causa o trabalho de um jornalista sénior da casa. Os dados que constam da notícia fazem parte de um documento interno do Governo, usado pela tutela no desempenho da sua ação política. A sua divulgação não era suscetível de obter um contraditório junto dos sindicatos porque a matéria que ali está vertida faz parte dos acordos de empresa. Quem tiver dúvidas sobre o assunto, faça o favor de consultá-los. O DN pensa no interesse dos leitores, milhares dos quais são utentes da CP e de outras transportadoras também referidas no texto, e têm o direito de conhecer as regalias e benefícios que ali vigoram e que todos nós pagamos com os nossos impostos. O dever do jornalista é divulgá-los, sobretudo num tempo em que, por exemplo, são cortadas isenções de taxas moderadoras a idosos que têm dificuldades graves no acesso à saúde, comparticipações em remédios de doentes crónicos em fase terminal ou prestações sociais como sejam complementos de reforma. Por muito que isso custe a certos leitores anónimos."

Preciso, desde já, esclarecer que os dois leitores que citei se identificaram perante mim de modo suficiente, não podendo ser considerados anónimos. Não dou atenção a correspondência anónima. No caso, fui eu que guardei a confidencialidade das suas identidades - e dispenso-me de explicar porquê.

Confesso que a resposta de Francisco Almeida Leite me deixou perplexo porque conseguiu a proeza de não me dar um único argumento jornalístico para a notícia que fez: há trabalhadores que fazem greve, pelo que é preciso dizer à população as regalias que têm os que fazem greve e os que a não fazem; há idosos que veem cortadas as suas taxas moderadoras, daí que seja necessário conhecer as regalias dos trabalhadores dos transportes. Nada mau para um argumentário político-partidário, mas que é do jornalismo?

Deixo uma reflexão sobre o tema do "interesse público" para o outro texto nesta página e volto à resposta de Francisco Almeida Leite.

Argumentário. Palavra-chave. É que a notícia em causa foi integralmente baseada num documento de circulação interna a que o jornalista teve acesso no ministério de tutela, e que ele próprio descreveu como "relatório interno que funciona como uma espécie de argumentário do Governo de resposta à greve".

Não há nenhum mal em um jornalista divulgar um argumentário interno de uma entidade pública. Mas mandariam as regras básicas do jornalismo que o fizesse de uma de duas maneiras: ou para denunciar a existência do documento como elemento de propaganda ou contrapropaganda política; ou para verificar a veracidade e consistência dos "argumentos". Ora, esta verificação faz-se através de investigação autónoma, confrontando documentos e informações disponíveis; ou, no mínimo, estabelecendo o contraditório, ouvindo aqueles contra quem se dirigem os argumentos.

Francisco Almeida Leite entendeu que não devia confrontar os sindicatos "porque a matéria que ali está vertida faz parte dos acordos de empresa". Isso significa que ele próprio se deu ao trabalho de investigar, ponto por ponto, todos os acordos de empresa para concluir, por exemplo, que os "trabalhadores DOS transportes não pagam medicamentos e recebem baixa por inteiro", o que, logo por azar, tirou da modorra um funcionário da CP às 5 e 43 da manhã!

Receio bem que essa investigação não tenha sido feita e que Francisco Almeida Leite haja dado como boas as informações que recebeu do Governo. Este meu receio é convertido em certeza por outro leitor que aqui identifico como MG: "O DN publica um 'trabalho' sem realizar qualquer investigação, sem exercício do contraditório, sem sequer tentar esclarecer a veracidade das informações que dá ou o seu verdadeiro enquadramento. Como resultado, mente aos seus leitores sempre que a sua fonte - o Governo - mente ao DN, engana os seus leitores sempre que a sua fonte enganou o DN. Um exemplo particularmente fácil para ilustrar isto mesmo: o DN coloca em título que os trabalhadores da Carris têm 30 dias de férias, contrapondo implicitamente no título e explicitamente no texto esses 30 dias aos 22 dias dos restantes trabalhadores portugueses - omite, por falta de profissionalismo ou má-fé, que esses 30 dias são de calendário (devido ao facto de se tratar de uma empresa com laboração contínua) e os 22 dias com que compara são dias úteis. Ou seja, um mês de férias tanto tem 30 dias de calendário como 22 dias úteis!"

O diretor de serviço naquele dia, subdiretor Nuno Saraiva, informou-me de que "neste caso, subscreve" a argumentação de Francisco Almeida Leite. Só me cumpre dizer-lhe que faz muito mal. Como explico no texto em baixo, invocar o interesse público e não cumprir o dever de lealdade para com os visados de os ouvir não é jornalismo, é propaganda. Foi esse, consciente ou inconscientemente, o exercício que o DN fez naquela manhã de terça-feira de Carnaval.
(fim da transcrição)

Como se pode ver por estes exemplos, e pelo que vemos, ouvimos e lemos, os argumentários do governo são usados pela comunicação social portuguesa de forma semelhante aos tópicos do Partido Republicano para “analistas”, pela Fox News.
O que é que isto tem a ver com o aniversário do ClariNet? O ClariNet é uma gota de água na denúncia destas situações, mas é juntando as gotas que se arranja água para fazer a limpeza necessária.

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2 comentários:

Clara Castilho disse...

Parace mentira que já tenha passado um ano!
OClarinet tem sido uma companhia diária e os comentários do Carlos Mesquita substituem a minha falta de tempo para ler ou ver notícias:
já sei que ele irá abordar o pincipal e mais "picante" acontecimento político ou social.É, pela minha parte,a colmatação da preguiça e falta de paciência para aturar os noticiários e debates...Obrigado por todos os alertas que tive e sem OClarinet não teria!

Maria Eduarda Colares disse...

Parabéns por um ano de bons textos, crítica desassombrada e boa companhia!