quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Boaventura de Sousa santos - Quarta Carta às Esquerdas.

Esquerdas 

O ClariNet publicou a primeira, segunda e terceira “Carta às Esquerdas”
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Quarta Carta às Esquerdas – por Boaventura de Sousa Santos.


As divisões históricas entre as esquerdas foram justificadas por uma imponente construção ideológica mas, na verdade, a sua sustentabilidade prática – ou seja, a credibilidade das propostas políticas que lhes permitiram colher adeptos – assentou em três factores: o colonialismo, que permitiu a deslocação da acumulação primitiva (por despossessão violenta, com incontável sacrifício humano, muitas vezes ilegal mas sempre impune) para fora dos países capitalistas centrais onde travavam as lutas sociais consideradas decisivas; a emergência de capitalismos nacionais com características tão diferenciadas (capitalismo de Estado, corporativo, liberal, social-democrático) que davam credibilidade à ideia de que haveria várias alternativas para superar o capitalismo; e, finalmente, as transformações que as lutas sociais foram operando na democracia liberal, permitindo alguma redistribuição social e separando, até certo ponto, o mercado das mercadorias (dos valores que têm preço e se compram e se vendem) do mercado das convicções (das opções e dos valores políticos que, não tendo preço, não se compram nem se vendem). Se para algumas esquerdas tal separação era um facto novo, para outras, era um ludíbrio perigoso.

Os últimos anos alteraram tão profundamente qualquer destes factores que nada será com dantes para as esquerdas tal como as conhecemos. No que respeita ao colonialismo as mudanças radicais são de dois tipos. Por um lado, a acumulação por despossessão violenta voltou às ex-metrópoles (furtos de salários e pensões; transferências ilegais de fundos colectivos para resgatar bancos privados; impunidade total do gangsterismo financeiro) pelo que a luta anticolonial terá de ser agora travada também nas metrópoles, uma luta que, como sabemos, nunca se pautou pelas cortesias parlamentares.

Por outro lado, apesar do neocolonialismo (a continuação de relações de tipo colonial entre as ex-colónias e as ex-metrópoles ou seus substitutos, caso dos EUA) ter permitido que a cumulação por despossessão no mundo ex-colonial tenha prosseguido até hoje, parte deste está a assumir um novo protagonismo (Índia, Brasil, África do Sul, e o caso especial da China, humilhada pelo imperialismo ocidental durante o século XIX) e a tal ponto que não sabemos se haverá no futuro novas metrópoles e, por implicação, novas colónias.

Quanto aos capitalismos nacionais, o seu fim parece traçado pela máquina trituradora do neoliberalismo. É certo que na América Latina e na China parecem emergir novas versões de dominação capitalista, mas intrigantemente todas elas se prevalecem das oportunidades que o neoliberalismo lhes confere. Ora 2011 provou que a esquerda e o neoliberalismo são incompatíveis. Basta ver como as cotações bolsistas sobem na exata medida em que aumenta desigualdade social e se destrói a proteção social. Quanto tempo levarão as esquerdas a tirar as consequências?

Finalmente a democracia liberal agoniza sob o peso dos poderes fáticos (máfias, maçonarias, Opus Dei, transnacionais, FMI, Banco Mundial) e da impunidade da corrupção, do abuso do poder e do tráfico de influências. O resultado é a fusão crescente entre o mercado político das ideias e o mercado económico dos interesses. Está tudo à venda e só não se vende mais porque não há quem compre.

Nos últimos cinquenta anos as esquerdas (todas elas) deram um contributo fundamental para que a democracia liberal tivesse alguma credibilidade junto das classes populares e os conflitos sociais pudessem ser resolvidos em paz. Sendo certo que a direita só se interessa pela democracia na medida em que esta serve os seus interesses, as esquerdas são hoje a única garantia do resgate da democracia.

Estarão à altura da tarefa? Terão a coragem de refundar a democracia para além do liberalismo? Uma democracia robusta contra a antidemocracia, que combine a democracia representativa com a democracia participativa e a democracia direta? Uma democracia anticapitalista ante um capitalismo cada vez mais antidemocrático?

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