Aproximava-se o 1º de Maio e os meses anteriores foram de intensa actividade política para todos os que fazíamos oposição ao regime. Tinha sido o aproveitamento da abertura marcelista nas eleições com o Movimento Democrático, o apoio expresso aos presos políticos, a actividade no Sindicato dos Técnicos de Desenho, para além da acção semi-clandestina que se sabia vigiada pela “bufaria” da polícia política.
Resultou numa exposição demasiada e esperava-se por isso a visita da PIDE a casa de alguns militantes, não havia nada a fazer senão salvar os bens que a polícia gostava de pilhar; brochuras clandestinas, livros proibidos, papeladas, panfletos etc. Era o conteúdo do saco que transportava… e logo nesse dia.
Desde o 16 de Março (ensaio das Caldas) contávamos com um levantamento militar anti-fascista, mas também corria entre nós a informação que Kaúlza preparava um golpe de extrema-direita, de antecipação.
O saco era um problema se na estação do Rossio estivessem tropas, e não fossem amigas – foi com esse receio que fiz a viagem.
Não estavam. Segui para a Junqueira, onde estava a trabalhar, deslocado pela ITT para fazer um levantamento de material obsoleto da NATO. Era o esconderijo para o saco até passar o 1º de Maio, a PIDE não iria a armazéns com trastes da NATO à procura de coisas “subversivas”.
Fechei o saco num cacifo, trouxe a chave e saí a galope, Alcântara, Santos, Cais do Sodré, Rua do Alecrim…e na subida vi o primeiro soldado, deitado, de capacete de aço e arma pronta. À volta alguns populares de pé e nas calmas faziam-lhe perguntas, o rapaz só sabia que tinha de estar ali. Do lado direito, por cima de um tapume, viam-se as janelas da António Maria Cardoso, de lá, daí a umas horas a PIDE faria as únicas vítimas mortais da Revolução de Abril.
As imagens deste soldado e das janelas do edifício da PIDE visto daquele ângulo estão registadas em filme, assim como tudo o que passou no Largo do Carmo onde estive, o Francisco Sousa Tavares em cima dum tanque, os tiros para o quartel, a espera pela rendição de Marcelo Caetano.
E foi assim passado o dia, iniciado com muita tensão e findado com imenso alívio. Depois dos pulos, dos abraços aos conhecidos que iam chegando, cantando o “povo unido jamais será vencido”, vitoriando os heróis fardados decorados com cravos, numa alegria colectiva incontável, acabei o dia sentado nos Restauradores com a minha namorada (não sei como me encontrou) a comer morangos.
Os morangos ficaram para mim como símbolo desse dia, têm uma vantagem sobre os cravos, não murcham como as Revoluções.
Este post é baseado num artigo que fiz em 2003. Este ano estou murcho para escrever sobre o 25 de Abril – eu até sei porquê…
2 comentários:
Mesquita, depois de falarmos lembrei-me onde estava no 25 da Abril de 74. Na tropa. E comemorei pouco quando vi montes de gente que nada tinham feito, que deixaram de me falar, a mim e à minha família, por ser do outro lado, a comemorarem que nem uns doidos. Achei para mim que algo não batia certo. Tenho essa sensação até hoje! De qualquer forma, SEMPRE, para os que foram sinceros antes e depois. Abraço. Carlos Godinho
Olá. Os Carlos estão a comparecer. É um excelente texto. Quer queiramos, quer não, o 25 de Abril foi para muitos de nós o dia mais feliz das nossas vidas. E tu evocaste-o bem. Para nós, não é uma «efeméride» - é um pedaço importante das nossas vidas.
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