sábado, 23 de abril de 2011

Um conto de Rubem Fonseca - no Dia Mundial do Livro.

                                             SCAN0065.JPG Rubem Fonseca
                                   O Agente

A placa dizia “Imobiliária Ajax”, e o agente subiu ao segundo andar. Na sala só havia uma mesa, uma cadeira e um homem sentado nela, imóvel, olhando o tecto.
  O agente olhou para ele e disse:
  “Sou do Instituto de Estatística e venho fazer o seu questionário.”
  “Que questionário?” perguntou o homem que estava na mesa.
  “Nome, nacionalidade, estado civil – esses dados todos.”
  “Para quê?”
  “Para o recenseamento, para sabermos quantos somos, o que somos.”
  “O que somos? Isso não”, disse o homem da mesa, com certo pessimismo.
  “O recenseamento nos dará a resposta de tudo”, disse o agente.
  “Mas eu não quero saber de mais nada”, disse o homem. “O senhor não está vendo”, acrescentou, subitamente aborrecido, “que eu estou ocupado?”
  O senhor me desculpe”, disse o agente, “mas sou obrigado a preencher a sua ficha, o senhor também é, de certa forma, obrigado a colaborar. O senhor não leu a proclamação do presidente da República?”
  “Não.”
  “Foi publicada em todos os jornais. O presidente disse – “
  “Isso não interessa”, disse o homem levantando da cadeira abrindo os braços, “por favor.”
  Mas o agente, lápis em uma das mãos e formulário na outra, não tomou conhecimento do pedido. “Seu nome?”, inquiriu.
  “José Figueiredo. Mas isso não vai adiantar de coisa alguma”, disse o homem, sentando novamente.
  O agente, que já tinha escrito “José” no formulário, parou e perguntou:
  “Por quê? O senhor não está me dando um nome falso, está?”
  “Não, oh! Não. Meu nome é José Figueiredo. Sempre foi. Mas se eu morrer amanhã, isso não falsificará o resultado?”
  “Esse risco nós temos que correr”, respondeu o agente.
  “Morrer?”
  “Sempre morre alguém durante o processo de recenseamento, porém está tudo previsto. Outros nascem. Está tudo previsto”, disse o agente.
  “Quer dizer que eu posso morrer amanhã sem atrapalhar a vida de ninguém?”, perguntou o José.
  “Pode – ora, o senhor não está com cara de quem vai morrer amanhã; está meio pálido e abatido, de fato, mas o senhor toma umas injeções, que isso passa. Estado civil?”
  “O senhor pode guardar um segredo?”, disse José.
  “Viúvo?”, disse o agente.
  “Um segredo que vai durar pouco?”, continuou José.
  “Eu só quero saber o seu estado civil, a sua –“, começou o agente.
  “Eu vou me matar amanhã”, cortou José.
  “Como? Isso é um absurdo! O senhor está brincando comigo?”
  “Olhe bem para mim”, disse José, “eu estou com cara de quem está brincando com o senhor?”
  “Não” disse o agente.
  Não escrevi nenhuma carta de despedida; ou melhor, escrevi, escrevi várias, mas nenhuma me agradou. Além do mais, não sabia a quem endereçá-las: ao delegado de polícia? – impossível; A Quem Interessar Possa – muito vago.”
  “Que coisa”, murmurou o agente. “O senhor vai se matar mesmo?”
  “Vou, Mas o senhor não precisa ficar chocado”, desculpou-se José.
  “Mas isso é um absurdo”, disse o agente, pela segunda vez naquele dia. “O senhor não gosta de viver?”
  “Bem”, disse José botando a mão na face e olhando o teto, “há certas coisas que eu gostaria de fazer, como beijar uma menina loura que passou por mim na rua ontem, tomar com ela um banho de mar e depois deitar na areia e deixar o sol secar meu corpo. Mas isso deve ser influência do céu”, disse ele olhando para a janela, “que está hoje muito azul.”
  “Concito-o a abandonar esse propósito. Prometa-me que não irá cometer esse gesto, disse o agente. “Eu estou com pressa”, acrescentou imediatamente, quando viu que José balançava a cabeça.
  “Já decidi; não posso mais voltar atrás.”
  “Isso é uma loucura. Eu não posso ficar aqui até amanhã, a vida inteira, procurando convencê-lo da sua insensatez. Não posso perder meu tempo”, continuou agora com mais vigor, “também preciso viver; cada dez minutos do meu tempo corresponde a cento e setenta cruzeiros e cinquenta centavos.”
  “Eu aprecio muito o seu interesse”, disse o José.
  “De nada, de nada”, disse o agente, olhando para o chão. “Ainda não fiz nada hoje”, acrescentou depois de uma pausa.
  José levantou-se e estendeu a mão. Apertaram as mãos em silêncio.
  O agente desceu as escadas lentamente. Quando chegou à rua, tirou uma folha de endereços do bolso e, com um lápis, riscou o nome “Imobiliária Ajax”. Olhou então para o relógio e apressou o passo.