domingo, 12 de agosto de 2012
12 de Agosto de 2012. Lembrar Miguel Torga.
Por Miguel Torga
Querido leitor: Escrevo-te da montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma Grande e percorrer a via-sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos. O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma peça cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. Ora eu sou escritor, como sabes. Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito: que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias em breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos. Que um dia virias ao encontro da aridez e da tristeza contida nas fragas, não como leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida. Prometi isso porque me senti humilhado com tanto surro e com tanta lazeira, e envergonhado de representar o ingrato papel de cronista de um mundo que nem me pode ler. Tomei o compromisso em teu nome, o que quer dizer em nome da própria consciência colectiva. Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar e, se possível for, comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.
Teu
MIGUEL TORGA
S. Martinho da Anta, Setembro de 1945 - Prefácio à segunda edição dos “Novos Contos da Montanha”.
Sobre Torga ler aqui. Mais os poemas, Brinquedo; Liberdade; Orfeu Rebelde.
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